A ESCOTEIRA E O CABOSO !
Com a ousadia de um jovem "escriba" ? ainda que caminhado nos anos - mais uma vez vou me aventurar num assunto dominado pelo ilustre saltograndense Dr. João de Souza, mestre na arte de escrever e versado em ferrovias, com seus ricos e brilhantes personagens, que todos nós deleita semanalmente através da Folha de Ourinhos.
Anteriormente, já me aventurei numa área que o Dr. Oswaldo Perino, amigo e parceiro de coluna no mesmo jornal, revelou-se profundo conhecedor - que é do futebol ourinhense!
Mais uma vez, recorrendo às lembranças de uma infância e adolescência, vividas em grande parte caminhando e brincando entre os desvãos do "viaduto" - passarela para pedestres sobre a ferrovia, ligando as duas partes da cidade - ou por entre os trilhos e vagões da saudosa Estrada de Ferro Sorocabana.
Para o leitor comum, particularmente para os mais jovens, as duas expressões que dão título ao texto, podem parecer estranhas e até mesmo exóticas, sem qualquer sentido prático ou de aplicação ordinária ? por estranhas aos seus vocabulários.
No entanto, para os ferroviários - como é o caso do Dr. João de Souza e outros como Sílvio Pontara, Sebastião Faria, Paulo Toledo ... - ou para quem tenha vivenciado o dia-a-dia de nossas estações e o movimentar das suas intermináveis manobras, as duas palavras podem soar familiares por dizer respeito ao seu cotidiano e experiência de vida profissional.
Ao contrário do que muitos possam adiantar, "escoteira" - nesse caso- não diz respeito ao feminino de escoteiro. A palavra simplesmente é empregada para indicar que uma locomotiva trafega isoladamente, sem tracionar ou empurrar vagões. Em geral costumam desenvolver maior velocidade - já que trafegavam sem tração - e, geralmente, apitando estrepitosamente, de forma mais insistente, pedindo passagem e alertando de sua aproximação.
Já a expressão "caboso", longe de assenhorar-se à fala de militar, no linguajar dos ferroviários definia o último vagão de uma longa composição de carga. Exibiam-se pintados na cor branca ou cinza bem claro. Dispondo de acomodações para o chefe-do-trem e seu ajudante; um arremedo de cozinha e, ainda, transportando equipamentos de comunicação para serem utilizados em caso de emergência, além dos lampiões empregados nas manobras e quando na cor vermelha sinalizando o final do trem.
A imagem que trago da "escoteira", em geral com prioridade de passagem na busca de uma composição isolada ou até mesmo para prestar algum tipo de socorro, seria semelhante a de uma moça fagueira, toda espivetada, passando a exibir seus atributos e distribuindo risos e "gritinhos" estéricos, como a anunciar-se como mulher.
Por outro lado, com sua aparência de ancião, o "caboso" se apresentava num trafegar trôpego - as composições de carga em sua cauda aparentavam ainda menor velocidade que a desenvolvida por sua locomotiva - como a zelar por sua prole, representada pela seqüência de vagões que se adiantavam a ele. Cabia aos ocupantes do "caboso" vigiar pela segurança e integridade da composição durante a viagem. Fiscalizar e acompanhar as manobras, de tal forma a assegurar a distribuição de suas cargas em seus respectivos destinos. E, com seus equipamentos de comunicação, numa situação de emergência - acidente ou avaria - enviar mensagem para a estação mais próxima.
Certa feita, entre o antigo matadouro municipal e a estação, deparei com um trem de carga parado. Havia atropelado algumas reses que, por negligência do dono, acabaram invadiram o leito da linha férrea. Pude então assistir os ocupantes do "caboso" - com criatividade e muita prática - utilizarem-se do equipamento que traziam consigo e ali mesmo realizarem sua conexão com a linha física do telégrafo que margeava os trilhos.
Através do código morse - atentem para a alta especialização dos ferroviários de então - cuja linguagem se restringia ao emprego do ponto e traço, comunicaram-se rapidamente com a estação de Ourinhos, informando-a sobre a interrupção da viagem e condições do local do acidente.
Dessa forma, cada um de nós à sua moda, vai contribuindo para preservação da nossa memória e resguardando valores e informações indispensáveis à compreensão da formação sócio / cultural desta comunidade e região !
Um comentário:
Bacana, doutor.
Você até me inspirou copiar a idéia. Até criei um próprio pro meu povo contar "pessoalmente" suas (nossas) histórias. Também recebi seu texto por email e vou repassar pra essa galera toda.
Queria ainda comentar que também "estamos" na última edição da Folha de Ourinhos, onde consta o seu: "Os segredos do carvoeiro". Pois é, arrumamos um jeitinho bem brasileiro e salto-grandense de colocar a matéria das amiguinhas formandas em jornalismo ainda esse ano. Tá na penúltima página: "No encontro da memória". Tem fotos. O gordo com cara de bebum (e provavelmente estava naquele momento), entre as gatinhas sou eu próprio, que também dei a tal entrevista.
Leio sempre seu blog e se me permite, queria também divulgar pro meu povo.
Prazer imenso "tê-lo" de volta nesse convívio.
Grande abraço,
Goulart.
Em tempo: Estarei na minha santa terra no próximo feriadão. Com certeza farei uma visita ao seu amigo Mario Perry pra atualizá-lo das novidades.
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