domingo, 19 de março de 2006

A pena de morte vigorou em Salto Grande

É verdade!

Podem acreditar !!!

Corria então - em meio a uma intensa atividade política - a primeira metade da década de 60, cujo desfecho todos nós conhecemos: a deflagração do Golpe Militar com a destituição do Presidente João Goulart e a imposição de um regime de exceção nos vinte anos seguintes.

Mas, na aprazível e calma Salto Grande - plantada às margens da Represa da Usina Lucas Nogueira Garcez, ou melhor, a cidade já estava lá edificada à beira dos rios Paranapanema e Novo quando a usina chegou para alterar definitivamente a sua paisagem - a sucessão dos dias caminhava de maneira sossegada, salvo na área da Segurança Pública onde o ambiente não era dos mais tranqüilos.

É bom que logo se esclareça. Essa conflagração não decorria dos efeitos da edição do Ato Institucional nº 1 e muito menos da prisão de algum estudante mais contestador e inconformado com a nova realidade ou de simpatizante do partidão que insistisse em pregar a revolução proletária.

Tratava-se apenas da falta de sintonia e desentendimentos que acabaram minando o relacionamento - que deveria ser harmônico e respeitoso - entre o delegado Chico Paschoal, recém nomeado, e o escrivão Aranha que atuavam na Delegacia de Polícia daquele município.

O escrivão de polícia, profissional já com alguma experiência e conhecedor de seu mister, por certo insatisfeito com a postura do jovem bacharel em direito que assumira a direção daquela unidade. Como já foi adiantado, tratava-se de um jovem, recém formado, ainda solteiro, por certo empolgado com a condição de autoridade policial - ainda que nomeado delegado substituto, por indicação política - se comprazia mais com as noites ourinhenses - cidade sede da comarca - onde residia confortavelmente no melhor hotel, relegando o estafante e rotineiro afazeres do dia-a-dia da repartição policial ao dedicado subordinado. Estaria, assim - preferindo mais o perfil de um relações públicas, bom vivant e vibrando com a atuação do colega Ewerton Fleury, diante do desgastante expediente da sua delegacia.

Incomodado com aquela situação, ocorreu ao zeloso escrivão tomar uma medida que implicasse numa lição ao delegado de polícia, que a tudo assinava sem dispensar o merecido cuidado ao conteúdo dos textos e documentos que tinha obrigação de analisar. Evidente que lhe faltava o necessário conhecimento jurídico, experiência profissional e orientação para o exercício daquele cargo com eficiência e dedicação integral.

Certa feita, ao final de um dia de trabalho penoso e no aguardo da chegada da autoridade policial - que ali somente aportava ao cair da noite - o "escriba" sentou-se diante da velha máquina de escrever - alguém já viu máquina nova em delegacia do interior (?) - e munido de modelo 27 (impresso oficial, então utilizado) pôs-se a minutar uma Portaria cujo teor não conheci, mas suponho e tento reproduzir da seguinte forma:-


PORTARIA nº 02/64

"O Bel. Chico Pascoal, delegado de polícia, titular do município de Salto Grande-sp, no uso de suas atribuições legais, etc...;

Considerando que o território deste município foi elevado à condição de área de segurança nacional;

Considerando a necessidade de manter a tranqüilidade e segurança, reprimindo qualquer inciativa de convulsão social;

Considerando que o momento que, permite a adoção de qualquer medida de exceção;


RESOLVE:-

Instituir, a partir desta data, a vigência da PENA DE MORTE no território deste município;

O sistema de execução será através de fuzilamento; e,

Como carrasco-executor nomeio o senhor CB Pedro de Souza, da Força Pública, DD Comandante do Destacamento local.

Registre / Publique e

CUMPRA-SE.

Salto Grande, 1º de abril de 1964

nome e ( acreditem ! ) a assinatura do delegado


O documento, esteticamente datilografado - de forma proposital e deliberada - foi colocado em meio a outros papeis a serem despachados pela Autoridade Policial e dessa maneira a PENA DE MORTE - por algum tempo, ainda que informalmente - teve vigência, sob testemunho da luminosidade das águas da Represa do Rio Paranapanema na pacata e bela Salto Grande.

Diante do episódio, logo tornado público pela indiscrição do Cabo Pedro de Souza, houve a tardia, mas necessária intervenção da Administração Superior da Pasta.

Por falta de opção, o escrivão permaneceu em sua sede de exercício, enquanto o delegado - de forma honrosa - era transferido a pedido para outra região do Estado.

Pelo que se sabe, não houve qualquer punição disciplinar e os dois policiais deram seqüência às suas carreiras e seguiram suas vidas, cada a seu modo, mesmo porque o fato desgastava mais à instituição que aos envolvidos.

O tempo passou e cerca de vinte anos depois - já na década de 80 - quis o destino que os mesmos personagens voltassem a se encontrar. Agora, ambos na condição de delegados de polícia acabaram designados para uma mesma unidade. Foi então que uma das facetas - a índole - do ser humano prevaleceu.

Lembro que houve apenas uma conversa particular entre ambos e dela foi emitido um desiderato informal. O antigo escrivão, desta vez, via-se na contingência de requerer a sua transferência para a Capital do Estado a fim de evitar maiores constrangimentos para seu chefe, que - pelo visto - não se esquecera do episódio que marcara indelével sua carreira.

Coube-me conviver com as duas personalidades - e, testemunhar a última passagem - e usufruir da imensa capacidade que ambos dispunham de fazer amigos e destacar o amor e dedicação para o trabalho policial - cada um a seu modo, é verdade ! - conseguiam realizar.

Hoje, para nosso deleite, fica registrado esse fato pitoresco, peculiar e interessante da atividade policial civil, como homenagem e pleito de saudade aos colegas, ambos já falecidos.

5 comentários:

Anônimo disse...

Caro Noel,
Não seria AZANHA o tal escrivão que depois tornou-se delegado?
Sou nascido naquela terra e tenho uma vaga lembrança do nome.
Abraço,
José Carlos Goulart
jgoulart@sabesp.com.br

Anônimo disse...

Noel,

Foi uma surpresa para mim encontrar esse blog com uma história muito curiosa da minha cidade. Conforme disse o Goulart no comentário acima (meu amigo de infância), o nome do escrivão está incorreto. O correto é Azanha, que mais tarde se tornou delegado em alguma cidade do interior e que morreu em um acidente há longo tempo.

Abraço,

Auro C. Oliveira
auro.oliveira@dlminfo.com.br

Alvaro Azanha disse...

Caro Sr. Noel
Que história preciosa me fizeste conhecer a respeito do meu pai!!
Sim, o Delegado Azanha, outrora escrivão zeloso, pela sua narrativa era o meu pai!
Nasci em agosto daquele ano (1964) e jamais soube deste pitoresco episódio do meu querido pai.
Sr. Auro, sim ele faleceu num acidente, juntamente com minha mãe no início de 1980, quando meus irmãos e eu ainda éramos adolescentes.
Vocês ainda continuam morando na região de Ourinhos e Salto Grande?

Unknown disse...

Caro Sr. Noel
Que história preciosa me fizeste conhecer a respeito do meu pai!!
Sim, o Delegado Azanha, outrora escrivão zeloso, pela sua narrativa era o meu pai!
Nasci em agosto daquele ano 1964) e jamais soube deste pitoresco episódio do meu querido pai.
Sr. Auro, sim ele faleceu num acidente, juntamente com minha mãe no início de 1980, quando meus irmãos e eu ainda éramos adolescentes.
Vocês ainda continuam morando na região de Ourinhos e Salto Grande?

Alvaro Azanha disse...

Caro Sr. Noel
Que história preciosa me fizeste conhecer a respeito do meu pai!!
Sim, o Delegado Azanha, outrora escrivão zeloso, pela sua narrativa era o meu pai!
Nasci em agosto daquele ano 1964) e jamais soube deste pitoresco episódio do meu querido pai.
Sr. Auro, sim ele faleceu num acidente, juntamente com minha mãe no início de 1980, quando meus irmãos e eu ainda éramos adolescentes.
Vocês ainda continuam morando na região de Ourinhos e Salto Grande?

Todos os direitos reservados.