sábado, 23 de setembro de 2006

A VIOLÊNCIA JÁ EXISTIA

Embora tendo vivido num lar harmônico, onde o casal se respeitava e procurava transmitir bons exemplos para os seus filhos e exigir destes comportamento condizente com a educação recebida, na minha infância assisti momentos de extrema violência.

A nossa rua, segundo meu irmão, seria uma representação das nações únidas. Famílias das mais variadas nacionalidades conviviam em paz. Mais do que isso, mantinham boas relações e se tornaram amigas - e, como era costume na época, conversar sentado na calçada era um hábito.

Por outro lado, a existência de pensões, restaurantes, bares, indústrias, em meio a outras atividades comercias e de serviço faziam da avenida Jacinto Sá, naquele trecho - infelizmente, hoje bastante degradada - uma área de intensa movimentação de pessoas de de veículos. Daquele ponto era possível alcançar as estações ferroviária e rodoviária, assim como, o centro da cidade através do saudoso "pontilhão".

Numa daquelas noites, observamos dois homens passar correndo, um perseguindo o outro - pela calçada oposta, alcançaram a antiga rua Goiás, tomando o sentido do viaduto.

Momentos depois, apenas um deles retornou apressado. Desta vez passou pela calçada de casa e chegou a tocar nas pernas do meu pai - sentado numa cadeira. Logo veio a notícia, seu algoz - o perseguidor, na primeira passagem - havia sido esfaqueado num desvão do Restaurante do Schmith, que funcionava junto ao acesso à passarela.

À certa distância, mais do que observar - ouvíamos os comentários não só da perseguição, mas também o seus desfecho dando conta que o crime de morte se consumara.

Em outra ocasião, abria o açougue para pegar o leite para o lanche noturno - geladeira só aquela do comércio - quando avistei "Gibi" e seu irmão "João Preto" saindo na mão, como dizem hoje. Ambos negros, muito fortes e agéis - trabalhavam como saqueiros.

Percebi claramente quando "Gibi" foi derrubado com um golpe, próprio de capoeirista, popularmente conhecido por "rabo de arraia" e ao levantar-se, vendo se em desvantagem, foi armar-se de um balaustre - tirada da cerca de proteção às árvores recém plantadas na rua - e golpeou seu irmão e desafeto até prostá-lo ao solo mortamente ferido.

Mais adiante, a profissão que tomei como princípio de vida, por mais de trinta anos continuou a me manter bem próximo da violência e até mesmo conviver com ela no dia-a-dia do meu trabalho. Lembro-me que nos primeiros tempos de atividade policial - algo como teste de aptidão - foram me exibidos os primeiros cadáveres produzidos pelo famigerado esquadrão da morte. "Negro Sete", "Saponga" e outros, isso quando eram transportados para o instituto médico legal.

Ainda assim, a imagem de violência mais nítida na minha memorária e que ainda me intriga diz respeito a dois meninos, meus amigos de infância !

Permitam-me referir a eles apenas como "Baianinho" e "Lourinho". Ambos moravam num mesmo quintal, ali na rua Amazonas. O primeiro, era filho de um pequeno comerciante de miudezas. O outro, filho de um soldado da antiga Força Pública.

Num final de tarde, depois da escola, como de costume saimos para brincar na rua. Dado momento, "Baianinho" e "Lourinho" - instigados por outras crianças - envolveram-se numa "briguinha" de criança. Nada de sangue ou machucado. Ambos acabaram apanhando "à meia", já que apenas se engalfinharam em luta corporal.

Depois da contenda, "Lourinho" afastou-se chorando. Enquanto isso, a mãe de "Baianinho" logo o chamou, evidente que para reprendê-lo.

Continuamos a brincar. Já escurecia quando vimos o policial chegar em sua casa e, inteirado do ocorrido - ainda meio fardado - invadir a casa do vizinho e tomando "Baianinho" nos braços o levou para oferecer ao filho, para que este revidasse a inexistente desvantagem sofrida durante a "briga".

Não chegamos a presenciar o que ocorreu no interior da casa do "Lourinho", mas é certo que "Baianinho" retornou muito assustado e chorando foi buscar refúgio no colo de sua mãe.

O clima ficou tenso e refletia a expectativa diante da iminente chegada do pai de "Baianinho" - esse apelido dizia respeito a origem da família. Não me consta ter havido desdobramento daquele fato, salvo a mudança da família do policial lá para os lados do "buracão".

Não saberia dizer se "Lourinho" e "Baianinho" continuam morando em Ourinhos. Tudo leva a crer que seus pais já estarão mortos. Mas essa passagem insiste em me acompanhar e ao reproduzi-la tento apenas desfazer-me de um fantasma que me persegue há meio-século.

Como puderam observar, guardo inúmeras lembranças boas e desagradáveis, poucas me incomodam e provocam indignação como essa conduta do miliciano. Ainda que passados mais de 50 anos !

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