Quando acompanho as escaramuças da seleção brasileira de futebol, assim mesmo, com letra minúscula, não tenho como não deixar de comparar as respostas e afirmações do treinador Carlos Caetano, nome de gaúcho, valente e ousado por natureza, suavizado, mas sem perder o perfil pelo apelido de “Dunga”, a uma das histórias contadas pelo meu pai.
Não posso omitir, que o velho tropeiro também trazia no sangue e na alma algumas características riograndense, já que sua mãe Ana, que não negava sua origem bugra, era natural de Carazinho – durante décadas alimentou o sonho de viver nas pradarias gaúchas, região que freqüentou comprando eqüinos – dentre as quais o prazer de contar seus causos.
Também trazia da sua região de origem, proximidades da cidade de Tietê, a influência de Cornélio Pires – escritor e contador de histórias e anedotas, através dos seus personagens caipiras - cujos textos reproduzia com fidelidade. Seus filhos e neto aprenderam pronunciar as primeiras frases repetindo bordões dessa literatura:- “Papagaio come milho, periquito leva a fama”; “Homem é homem, lagarto é um bicho” e outras que trazem consigo a sabedoria do homem simples e rural, ainda encontrado no interior.
Com o tempo, muitas vezes tentávamos interromper seus causos, alegando que já o tínhamos ouvido muitas vezes e os sabíamos de cor e salteado. Então, com uma ponta de ironia, nos dizia:- “é para vocês não se esquecerem“. E seguia ele nas suas longas descrições de fatos e pessoas, sem perder o elã e preparando o epílogo das suas histórias com a ênfase indispensável para deter a atenção do ouvinte.
Também era bom ouvinte e as tripulações dos trens de passageiros – maquinistas, camareiros do carros dormitórios, garçons e cozinheiros dos restaurantes – eram seus interlocutores constantes, mesmo porque foram, por décadas, seus fregueses assíduos no açougue e, por isso, preferências.
Em uma dessas passagens, ouvidas do camareiro Borges, homem de fala mansa, educado, de gestos suaves e com bom gosto no trajar, se referia a uma de suas inúmeras viagens para Porto Alegre – como uma experiência vida, num relato recheado de curiosidades, por incomum aquele modelo de comportamento. Acreditem! Já existiu trem de passageiros ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul.
O experiente ferroviário, lembrava que o trem costumava, salvo eventuais atrasos, alcançar a estação da capital gaúcha, nas primeiras horas da manhã. Depois de acompanhar os passageiros até a plataforma, levando as malas e auxiliando no cuidado com as senhoras e crianças, passava a dar ordem nas cabines. Banheiros lavados, chão limpo e roupa de cama trocada, costumava sair para algumas compras – sempre buscava levar para sua casa produtos típicos das cidades onde parava. Por exemplo, de Ourinhos, costumava levar frangos – geralmente adquiridos da dona Ana, mãe do Bija, da funerária – e carnes de boa qualidade. Outra preocupação, era sempre encontrar um bom lugar para comer.
Foi nessas andanças, ao parar em um ponto de venda do mercado municipal da capital gaúcha e indagar sobre algum produto, foi abordado por um solícito cidadão bem falante e até “meio entrão”. Por empregar com propriedade as expressões gauchescas, logo cativou o visitante e sua familiaridade com a culinária local despertou a curiosidade do viajante.
Ao saber que o visitante estava a procura de um bom restaurante, não se fez de rogado, de pronto convidou o desconhecido para almoçar em sua casa, onde prometia lhe ofereceria uma daquelas iguarias que acabara de descrever.
Com a hesitação dos precavidos, a princípio tentou se esquivar do convite, mas levado pela insistência do nativo e a curiosidade dos incautos, acabaram convencendo o viajado paulista a aceitar o convite – mal sabendo da grotesca experiência que o aguardava...
Mesmo alertado sobre a distância a ser percorrida, ainda assim aceitou o desafio de seguirem a pé, talvez por ter o anfritrião comentado que precisava encontrar algumas iguarias e temperos indispensáveis à preparação do prato prometido.
Logo estranhou que o gaúcho, sob pretexto de precisar comprar determinado produto, parava e entrava praticamente em todas as “bodegas” que encontravam pelo caminho. Em cada uma delas, sem exceção, não hesitava em separar mercadorias das mais diversas, incluindo gêneros de primeira necessidade, outros nem tanto, até mesmo bebidas sobre as quais ressaltava a qualidade e dizia indicadas para acompanhar a refeição prometida.
Julgando-se um homem vivido e suficientemente atento para perceber quando estava na iminência de ser ludibriado, o ferroviário/camareiro ficou preocupado quando observou seu anfitrião - logo nas primeiras compras, com a esperteza própria dos malandros, alegando estar desprevenido, ao passar pelo caixa, como a oferecê-lo como troféu, num tom de arrogância, proferir:- PAGA PAULISTA, DEPOIS NÓIS ACERTA! Embora consciente da situação, certamente menosprezou a capacidade do seu algoz, aquiesceu e resolveu pagar para ver.
Mais adiante, em outras situações semelhantes, quando chegavam no caixa, valendo-se da mesma alegação de estar sem dinheiro, em voz alta e convincente – tal qual o treinador da seleção, quando tenta justificar a má qualidade do futebol do seu time - num arroubo de autoridade dizia:- PAGA PAULISTA, DEPOIS NÓIS ACERTA! Naquela altura, o ressabiado paulistano ainda guardava alguma esperança de ver-se ressarcido quando chegassem à residência do gaúcho.
Ambos sôfregos, por carregarem diversificada quantidade de gêneros alimentícios, finalmente alcançaram a pequena e humilde moradia, onde os aguardava uma mulher simples e uma “penca” de guris, que logo acorreram ao encontro de ambos, exibindo os olhos fundos, demonstravam maior interesse em saber o que o pai lhes trazia para comer.
Após ser apresentado como um amigo que trazia para almoçar, observou o gaúcho instigar a esposa para esmerar-se no preparo da comida. Evidentemente constrangido, dividiu a mesa com aquela família, sempre ouvindo as histórias mirabolantes contadas por seu anfitrião, que em geral redundavam em insucessos de suas empreitadas. Por fim, o paulistano deixou aquela residência com a certeza de que fora ludibriado e explorado pelo simpático porto-alegrense.
Ainda assim, retornou para São Paulo convencido de que valeu a pena conhecer outra faceta da sociedade gaúcha, revelada pela vivacidade e ousadia de um dos seus lídimos representantes - para justificar o engodo, outro sentido não encontrou no episódio, salvo o de oferecer-lhe mais uma boa história para contar!