Evidente que as duas situações não guardam semelhança quanto à sua origem e conseqüências. Mesmo assim, ainda é possível estabelecer alguns parâmetros, por envolver valores imprescindíveis à organização militar e trazer no seu bojo iniciativas e procedimentos próprios, por indispensáveis ao controle interno das corporações.
A situação presente diz respeito ao movimento dos controladores de vôo do tráfego aéreo brasileiro, que se protrai ao acidente com o avião da Gol, de triste memória, resultando na morte de 157 pessoas. A partir daquele triste episódio, a aviação civil nacional se transformou - mazelas da pior espécie, como sucateamento de equipamentos, falta de preparo e má remuneração foram denunciadas - em tormento para os administradores, empresas aéreas e, principalmente para os usuários.
Disso se aproveitaram os controladores de vôo para reivindicarem, não só melhores condições de trabalho - incluindo plano de carreira e melhoria salarial - como a desmilitarização do setor, com possibilidade dos graduados que atuam na área optarem pelo serviço civil. Deflagrado o movimento paredista, o Governo Federal interveio e desautorizando o comando da aeronáutica e, por conseguinte, quebrando as rígidas regras - hierarquia e disciplina - basilares do regime militar, fez promessas que certamente terá dificuldade de cumprir.
Esse episódio, particularmente me remete ao final da década de 60 - precisamente, outubro de 1969 - quando o governo militar, com visível propósito de centralizar o poder, resolveu unificar as policiais estaduais uniformizadas em apenas uma corporação, criando a Polícia Militar, subordinada ao Exército, nos moldes que funciona atualmente. Antes disso, no Estado de São Paulo, existia a Força Pública, Guarda Civil, Polícia Marítima e Aérea e Guardas Noturnas - além da Polícia Civil, que foi preservada, por sua função na persecução criminal.
Como ocorre nas fusões dos grandes conglomerados empresariais, a Força Pública, por sua tradição centenária - criada por Tobias de Aguiar, com o prestígio de ser marido de Domitila de Castro Canto e Melo, consagrada como a Marquesa de Santos - e, exibindo maior efetivo e fundada nos princípios do militarismo, nessa condição majoritária manteve a hegemonia e controle da nova corporação policial. Consta que houve resistência, inspetores da Guarda Civil, por trazerem consigo o espírito civilista, calcado na liberdade de expressão, teriam sido taxados de comunistas - alguns foram perseguidos, presos e expulsos da instituição - e tidos como insurretos.
Tal como acontece agora, a diferença entre o regime militar e civil ficou logo exposta. Evidente que os integrantes da antiga Força Pública, diante das regalias e benesses que eram beneficiários, em caso de lhes permitir o direito de opção - ou seja, não integrar a nova corporação - criaria dificuldades para a administração. Então, essa possibilidade - ou seria direito - foi logo vedada aos milicianos, certamente louvando-se no mesmo princípio que atualmente orienta o Ministério da Aeronáutica para impor resistência à demandada dos seus graduados especializados no controle aéreo.
Também como ocorre nesse episódio, havia a preocupação da Força Pública manter - não só o seu efetivo formado nas suas hostes, sob sua doutrina - como preservar o seu patrimônio e, sendo possível, ampliá-lo com os imóveis e acervo pertencentes as demais corporações. A Guarda Civil, por exemplo, dispunha de uma exuberante sede na avenida Higienópolis; hospital na rua Albuquerque Lins; serviço de fundos na avenida Angélica; sede social e outras tantas unidades. Apenas a sede foi revertida para a Polícia Civil, depois de servir como Gabinete do Secretário da Segurança Pública.
Aos integrantes da Guarda Civil foi dado o direito de opção. Lembro que o prazo era exíguo e as informações eram contraditórias, sempre voltadas para confundir e dificultar a escolha do policial. Salvo alguns dirigentes, o seu alto comando infundia medo e anunciava tempos difíceis para quem optasse. Falavam em um quadro em extinção, onde não haveria preservação dos direitos e até mesmo os vencimentos seriam congelados.
O prazo se exauria e os guardas civis com responsabilidades familiares - como ocorre agora com os graduados da força aérea - vislumbravam dificuldades, no caso de optarem, não só de caráter financeiro, como também na área de assistência médica, odontológica e caixa beneficente. Não satisfeito, o então comandante da Guarda Civil - coincidentemente, um coronel da aeronáutica - deliberou que os pedidos (opção) seriam entregues a ele pessoalmente, em cerimônia a ser agendada.
No estertor do prazo, sob a iminência de convulsão, a mesa receptora foi instalada. Já desprovidos de seus uniformes, adredemente recolhidos, os guardas civis-optantes, um-a-um foram sendo atendidos. Antes da formalização do pedido, mediante protocolo, ainda recebiam a advertência - na forma de um aconselhamento ou orientação - você sabe tem o que vai fazer, formalizando essa escolha?
Aqueles, ainda indecisos por questões familiares ou inseguros pela pressão sofrida, acabaram desistindo. Outros, como aconteceu com esse articulista, tomado por um átimo de lucidez ou outro sentimento qualquer, respondeu:-
- Ao integrar o quadro em extinção eu não saberia dizer o que vou fazer, mas caso não opte, não tenho dúvidas sobre o tratamento que vou receber na Polícia Militar!
Os tempos que se seguiram foram realmente difíceis. Os nossos salários permaneceram congelados. Perdemos o direito de assistência médica e odontológica, dificuldade estendida aos nossos familiares. Já não podíamos nem mesmo abastecer nossas casas no armazém e farmácia da Caixa Beneficente da Guarda Civil, diante da intervenção da Polícia Militar.
Felizmente, a Polícia Civil, movida por interesse em nossa mão de obra - na época o número de distritos policiais havia dobrado e não existiam policiais para ocupá-los - e em algum patrimônio da extinta Guarda Civil, nos acolheu e permitiu que nos tornássemos escrivães-optantes, investigadores-optantes, operadores-optantes, possibilitando assim a seqüência da nossa carreira policial. A equiparação salarial apenas foi obtida anos depois, via Poder Judiciário.
Ainda assim, o número de optantes ficou em torno de 1.112 guardas civis - poucos graduados. Briosos e valentes que, com o gesto da opção, preservaram os valores civilistas, calcado na liberdade de pensar e de agir através da iniciativa e criatividade individual, sempre estimuladas na busca do melhor resultado e do desenvolvimento pleno do ser humano.