segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Botina 'TESTA DE TOURO'

O primeiro par foi comprado na Sapataria Nunes, recém-aberta na avenida Jacinto Sá, esquina com Gaspar Ricardo, onde hoje está instalada a Sorveteria Pinguim- ali também já havia funcionado a Pensão Italiana, da família Padilha (avós da Orminda), depois da dona Itália, mãe do Natal e o Bar do Bernardo, talvez o último bar noturno da cidade e reduto da boemia.

Reconheçamos não se tratava de um calçado mais confortável - sua ponteira e o calcanhar eram reforçados por um material resistente, rígido e praticamente indestrutível. Nada comparado com um "Bibo", "Picolini" ou Scatamachia, que aprendi admirar e desejar, mais adiante usufruir do seu conforto - esta última marca, no seu modelo clássico sem costura, era a predileta do senhor Narciso Migliari, a quem prestava serviço de engraxate.

Quando ganhei – melhor seria dizer, conquistei no grito - meus irmãos Tércio e Aureliano já desfilavam com suas botinas novas, ainda com alguma dificuldade de andar, os pés estavam mais acostumados ao caminhar descalços e as botinas eram pesadas, mas suportavam chutes em latas e até pedras. Não eram muito ajeitadas para o controle da bola (de meia, quando muito de tentos) e os chutes no futebol.

Sendo o filho caçula, ainda na infância – ali pelos cinco ou seis anos - não foi muito difícil convencer meus pais a comprar a sonhada "testa de touro". Podem logo perceber que as minhas dificuldades foram maiores: primeiro para calçá-las, o pé tem que alcançar o interior da botina "meio de lado" e depois virar para – com o perdão da palavra - acomodar-se dentro daquela forma; segundo, uma vez calçado, a sensação era de uma armadura, quase de um escafandrista, mudar os passos e caminhar em linha reta era uma aventura. Correr então? Nem pensar. Ainda sem muito uso, a botina – apesar de muito reclamada – foi abandonada num canto da casa, na época o mais comum, era debaixo da cama mesmo.

Esse episódio foi relembrado durante a troca de presentes do último Natal – dezembro de 2010 – o primeiro que passamos aqui no Sítio "Canto das Siriemas". Para deleite das "crianças" - o certo seria apetite – preparava o consagrado "miolo de alcatra", inteiro, envolto no sal grosso, na beira da grelha da churrasqueira, que concorria com a costela de leitoa que teimosamente abandonou o freezer acompanhando as "picanhas. Enquanto conversávamos esperando a "meia-noite", adiantava os "petistos" - linguiça de pernil e pedaços de frango. O centro das atenções era o "Pirata", filhote de cachorro, sem raça definida, nossa primeira conquista aqui do sítio (ganhamos de um vizinho) de cor branca, com manchas pretas, uma delas envolvendo seu olho direito, justificando assim o apelido.

Durante a troca de presentes, desta vez foi o meu caçula Gustavo - esses caçulas! - ao me presentear, surpreendeu-me ao oferecer uma bela botina, nos moldes da "testa de touro", já bem mais elaborada e muito mais confortável. É verdade que não foi a primeira que surgia aqui no sítio, o Noel Jr. que, ao lado do seu irmão Solano, também já pegara gosto por calçado de qualidade – aqueles que não precisam "lacear "- apareceu com uma botina amarela, da qual eu já compartilhava nas suas ausências. Para fazer justiça, lembro que Gustavo é educador e esportista, razões pelas quais seu calçado preferido é o tênis, quando não o chinelo de dedo.

Com receio de encontrar dificuldades para calçar a botina nova deixei para experimentá-la longe dos olhos ávidos por um percalço ou uma "mancada" literal do "meu velho", como eles costumam se referir ao pai. O número estava correto, consultado o neto Rafael, preferido por ser o único, já havia confirmado o tamanho. Apenas hoje, quando comecei a lidar – tratar das novilhas e da vaquinha de leite, limpar o galinheiro, recolher os ovos e cuidar da horta – com os afazeres diários do sítio, pude calçar (com aquelas mesmas dificuldades) o novo calçado, isso depois de proteger preventivamente os dedos dos pés com esparadrapos. A minha nova "testa de ouro", ainda traz reforços no bico e no calcanhar, agora suficientes para assegurar um caminhar seguro - ainda que meio claudicante, decorrência da idade, entre as plantações e o pasto - com a segurança desejada pelos filhos.

Com isso, aliada à alegria de conviver alguns dias com meus filhos, a nora Rachel (apaixonada também pelo Pirata) e o neto Rafael, este sócio fundador e frequentador assíduo do sítio – sempre com o inestimável comprometimento e da necessária parceria da Orminda – passo a registrar novas experiência, desta vez no campo, lidando com as coisas da terra e dos animais, com a inquietação de sempre, diante da possibilidade de viver novas vidas, sem perder de vista os lugares, passagens e pessoas já vividas.

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